I. DEFINIÇÃO. — A tentativa de definição da Utopia é complicada pela multiplicidade de aproximações possíveis. A aproximação política, por mais que possa parecer paradoxal, é, certamente, menos sentida do que a literária e a sociológica, como testemunham as confusões determinadas pela aceitação de definições inadequadas para a compreensão do fenômeno, enquanto é uma constante da reflexão política em cada tempo e em cada país, muito além da cultura ocidental. Na perspectiva que nos interessa, nem todos os escritores de Utopias são utopistas porque, para sê-lo, ocorre que tenham fé na sua imaginação política, isto é, que creiam que o melhor dos mundos não é apenas pensável, mas é também possível ou até certo e inelutável porque a ele somos levados pela força das coisas. Esta distinção, assim motivada, é bastante clara para a consciência comum, mas Utopia, utopista, utopismo, utopístico e utópico não têm o mesmo significado para todos. O homem da rua continua a servir-se destes vocábulos na acepção corrente — a única não controvertida, mas há muito tempo fora da linguagem técnica —, enquanto novas e, às vezes, contraditórias definições são propostas pelos historiadores do pensamento e da literatura, pelos sociólogos e cientistas políticos. A disparidade de opiniões figura numa enorme bibliografia: a de A. Neusüss (1968) compreendia já 695 títulos. Os debates destes últimos anos nos levam a acreditar que já superam o milhar. Como acontece freqüentemente, a discussão não corresponde ao igual empenho no estudo dos textos e dos autores: uns filologicamente incertos, outros conhecidos, às vezes, somente por algumas atribuições que podem ser questionáveis, encontradas em velhos manuais bibliográficos (Barbier, Quérard, etc.). O problema da definição não é filológico mas de conteúdo; portanto, as soluções propostas de cada vez assumem um valor subjetivo que gera confusões e desentendimentos, sempre que sejam esquecidas as premissas sobre as quais os mesmos se apóiam. A etimologia é conhecida e é muito simples quando se supera a disputa filológica aberta pelo livro de Thomas Morus (Libellus vere aureus, nec minus salutaris quam festivus de optimo reipublicae statu deque nova Insula Utopia) desde os anos imediatamente sucessivos à sua publicação (1516): ou seja, se a Utopia daquele neologismo deve entender-se como contração do grego ou (e como substitutiva do uso mais correto de um a privativo e não mais como contratação de eu). Enfim, “lugar inexistente” ou “lugar feliz”? No mesmo título Morus especificava que o objeto do libellus seria a busca de um “ótimo Estado” e, na sextilha de Anemólio, este levará adiante a dialética dos contrasensos, unindo o significado de inexistente e de feliz: “Utopia priscis dicta (…). Eutopia merito sum vocanda nomine”. Fonte: Dicionário de política I Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino – Editora Universidade de Brasília, 1 la ed., 1998